terça-feira, 14 de julho de 2009

Diário de uma mudança


Me faltam páginas no diário. Justo eu que sempre fazia questão de documentar tudo. Notei isso outro dia, quando senti falta de mim mesma. Fui resgatar uns pedacinhos meus que se espalharam ao longo dos anos naquelas velhas páginas.
Encontrei um capítulo do diário em que me descobri moleca. Camiseta longa, bermuda de lycra, tênis sujo e um rabo de cavalo. Ao meu lado estavam poucas caras que me acompanham hoje em dia. Eu vivia com minha bicicleta vermelha, toda suada, com camiseta rasgada e joelho ralado das infinitas brincadeiras. No rosto, carregava um sorriso de quem estava sempre aprontando. No coração, sonhava com amores platônicos com membros do Menudo e, a realidade mais próxima de namorado, era a que eu sentia por ídolos como Michael J. Fox., estrelando “ De volta para o futuro”.
Continuei folheando meu velho confessionário e redescobri minha porção surfista. Quando acordar às 5 horas da manhã para pegar onda na ponta da praia, nada mais era do que uma desculpa para ficar fora de casa, sozinha e com a galera. Nesta época eu não ligava se estava andando com bunda de fora, se me olhavam, se eu tinha o peso certo ou se meu cabelo ficaria ressecado. Meus namoros eram por meio de cartas escritas em papel. Minha neura se resumia a conseguir notas escolares. Meu pesadelo era a chegada do boletim.
Me peguei enxugando uma lágrima e respirando fundo pra resgatar o fôlego, pois em meio aos meus pedaços descritos naquele antigo diário , eu revi alguns rostos que se perderam no tempo. Naquela época, eu jamais imaginaria que sentiria saudades do cheiro do cigarro da minha avó, do som da velha banda marcial tocando e dos passeios no banco de trás do carro dos meus pais. Descobri que naquela época me faltava malícia, me faltava responsabilidade, me faltava maturidade, me faltava experiência. Afinal, eu era uma criança. E que delícia era ser criança....
Mudei a página do diário e encontrei embalagens de balas recebidas por correio elegante, depoimentos escritos por um colega de sala e lamentações devido ao castigo que ganhei no fim de semana. Eu não sabia que aqueles não seriam meus amores, aqueles não seriam meus amigos e que teria milhares de fins de semana. Descobri que naqueles anos eu ainda acreditava em tudo e em todos, que bastava eu precisar de um agasalho novo e ele aparecia, que uma briga na escola não durava mais do que dois dias.
Engoli em seco meu choro, pois naquelas páginas constava um relato da minha vida. Minha transformação estava retratada nas páginas e a mudança era nítida.
Aquele sorriso moleque; sincero; meio bobo; exagerado e com aparelhos nos dentes, deu lugar a um mais contido e para poucos. Aquele olhar travesso; intenso; brilhante; curioso; honesto e profundo, foi substituído por um mais sério; opaco; desconfiado e preocupado. Aquele vestuário despojado; desinteressante; simples e confortável; virou ferramenta para que eu venda a imagem de mim mesma no dia-a-dia. Aquela cabeça onde cabiam sempre travessuras; aventuras; estripulias e brincadeiras de esconde esconde; agora acolhem preocupações; contas; consultas ao médico; horários e “cabelos brancos”. Aquele coração ingênuo; puro, esperançoso; confiante e romântico, transformou-se em pedra bruta, cansado de apanhar e desiludido demais para acreditar.
Fui reler meu diário buscando temperos, inspirações, motivos para me redescobrir, para me reconstruir. Adicionei a mim, uma nova receita com meus velhos ingredientes. Colhi uma pitada da menina sapeca para meus dias de aventura; uma colher da criança ativa e inocente para os momentos confusos; uma xícara da adolescente apaixonada e romântica para minhas noites quentes; meio copo da expectativa e simplicidade da colegial divertida e segura para minhas reuniões exaustivas. Juntei todos estes ingredientes aos que consegui ao longo da vida e mexi.
Após ler meu diário e planejar a minha nova receita, percebi que as páginas que faltavam não faziam mais falta. Estava pronta para escrever outros capítulos. Lembrando o que era bom e agradecendo por ter superado o que era ruim, sorrindo para o que resgatei de melhor e tranqüila por ter superado o que ocorreu de pior.
Fechei as páginas antigas para iniciar uma história nova. Desta vez sem esquecer os bilhetes, os rostos, os cheiros, as brincadeiras e a delícia dos riscos.
Notei isso quando me vi como uma equilibrista entre o antes e o depois. Carregando no rosto as rugas da idade junto à travessura de menina. Escondendo no peito o coração rachado, mas pronto para amar de novo. Desfilando com o salto de mulher vivida, sem esquecer do rabo de cavalo que mais parece aquela criança que estava esquecida.
No olhar ficou o brilho, no coração a saudades, na cabeça o aprendizado. Para quem me vê sou a mesma, para quem me conhece sou um futuro...

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